Após se livrar das dores, Rogério Ceni admite ‘risco’ de treinar o São Paulo no futuro
Rogério Ceni no banco de reservas é uma visão surrealista. Afinal, é titular intocável do São Paulo desde 1997, um dos maiores vencedores e ídolos da história do clube, recordista de jogos com a camisa tricolor e maior goleiro-artilheiro do mundo.
Mas Rogério pode ir para o banco… Quando estiver aposentado. Há alguns anos, ele rechaçava a possibilidade de, um dia, se tornar técnico. Dizia que já era goleiro e não teria saúde para acumular as duas funções mais desgastantes do futebol.
Mas agora, nos últimos meses da carreira, que pode terminar no fim deste ano ou de 2013, depois de ser comandado por 18 treinadores no São Paulo e visitar Jose Mourinho e Pep Guardiola, ele já admite a possibilidade de trocar as camisas personalizadas com o número 01 às costas pelos trajes de “professor”.
A lesão no ombro direito, a mais grave em 22 anos como profissional, tem servido como laboratório involuntário. Ceni acompanha o time do coração das cativas do Morumbi. Observa espaços, o apoio dos laterais, a marcação…
Sem pretensão alguma de dividir tarefas com Emerson Leão. Até porque, sempre que toca no assunto, o ídolo faz a ressalva de que, até o dia 31 de dezembro, só pensa em voltar a defender sua meta. A diferença é que, agora, o “mito”, como é chamado pela torcida, admite prolongar sua história no Tricolor à beira do gramado.
– Seria um risco, assim como era um risco bater falta. Se eu decidir isso no futuro, não vejo problema nenhum em treinar o São Paulo. Aliás, acho que seria mais fácil ser técnico do São Paulo do que do Corinthians (risos).
O goleiro concedeu entrevista exclusiva ao GLOBOESPORTE.COM na grande área de um dos campos do CT da Barra Funda.
Local que ele não vê a hora de ocupar novamente. Na reta final de sua recuperação, que só será completa quando ele não sentir mais dores, revelou a felicidade ao conseguir enxugar o suor do lado direito do rosto, declarou confiança no título da Copa do Brasil, falou de Neymar, da atual safra de goleiros, Copa-2014, concentração e da chance de o Corinthians conquistar a Libertadores:
– Não muda nada na minha vida.
Como está sua recuperação?
Está bem melhor. Já ergo bem o braço, estou com 90, 95 por cento de amplitude do movimento. Comecei a fazer peso livre para fortalecimento, as quase duas horas de exercícios na piscina por dia ajudam bastante. Agora é trabalhar para investir mais na musculação. No campo já faço muitos movimentos. Já durmo sem dor, uma série de coisas que me facilita a vida. Sinto dor quando faço força ou levanto o braço para trás.
De que forma trabalhou o lado psicológico durante a pior lesão da carreira?
Tem dias que você acorda mais confiante, alegre, com menos dores, faz exercícios novos, se empolga e acha que está quase bom.
Tem dias que regride um pouco, desanima. Não adianta pensar cinco ou seis meses à frente, tem de se adequar às circunstâncias que a vida oferece. Quando comecei a correr, não conseguia enxugar o suor do lado direito do rosto.
E falava que, quando conseguisse, ficaria feliz. Hoje enxugo normalmente e ainda não estou feliz, mas são objetivos que você coloca para melhorar. Nesses pequenos movimentos nota-se uma grande melhora num prazo mais longo.
É mais difícil encarar a lesão pelo fato de estar no fim da carreira?
Acredito que seja. Não tive nenhuma lesão grave no começo, ainda bem. Mas o tempo vai se espremendo. O fim está ali e cada dia fora do campo é uma perda grande. Mas no dia-a-dia você passa por cima, esquece e só quer ficar bom o suficiente para estar presente no próximo jogo. Já comecei a nadar em torno de mil metros por dia. Estou na batalha, na luta diária.
Você tem perspectiva de reduzir o prazo de retorno, que é para fim de julho ou começo de agosto?
Tenho muita vontade, mas quem vai me dizer é a dor, e ela é muito subjetiva. Não sei se não terei mais dor alguma daqui a um mês, ou se daqui a dois meses ela vai persistir. Nunca tive uma lesão como essa, não tenho parâmetro.
Há dois meses eu achava que nunca iria ficar bom. Agora, com quatro meses de cirurgia, me sinto bem melhor. Se você chutar uma bola eu tenho reflexo para pegar. Mas a volta ainda não dá para ser projetada.
Alguns jogadores têm voltado de lesão melhor do que estavam antes. Você imagina que isso possa acontecer com você?
Meu Campeonato Brasileiro no ano passado foi muito bom. Não ganhamos, mas foi muito bem jogado. Espero voltar no mesmo nível. Estou fazendo o máximo para isso.
Qual foi o momento em que você mais lamentou não poder estar em campo?
Quando você está impossibilitado e sente que não tem condições, não existe um lamento tão grande. Quando estiver mais próximo da volta, me sentir apto a fazer os movimentos, vou sentir uma ansiedade maior.
Por enquanto os jogos mais importantes foram contra o Santos, na semifinal do Paulista, e a Ponte Preta, na Copa do Brasil. Lamento sempre porque é outra emoção, circunstância, situação de vida, pressão, querer e poder ganhar. Quero viver isso o mais breve possível. Por enquanto ajudei com palavras e incentivo sempre que possível.
Você se envolve muito com o jogo. Como tem sido essa fase de torcedor?
Eu não jogo só como goleiro, gosto de participar, compreender como funciona. Há necessidade de interpretar o árbitro, a pressão, quem é quem, os mais experientes, mais jovens, conversar. Isso é legal, o conjunto em que se transforma o jogo, não apenas o cara chutar e eu defender.
Como torcedor é impossível viver isso, então acompanho de cima, olho os espaços, o que podia estar melhor. Para conhecimento próprio, porque temos o treinador que tem a visão dele. É legal observar o porquê de ter tomado o gol, se ficou muito espaço no meio, os laterais descem juntos, se precisa compactar mais. Durante o jogo não tenho essa visão.
Isso tem a ver com uma vontade de ser técnico?
Futebol é minha profissão, acho necessário entender como um todo. Sou goleiro, mas gosto de ver como funciona, independentemente da profissão que eu vá seguir. Desde garoto gosto de ver tipos de treinamento, por isso viajei (para Madri e Barcelona) para ver outros treinadores, preparadores físicos, o que é melhor para um time.
Um atleta tão identificado como você pode se tornar técnico no clube?
Se eu decidir isso para minha carreira, no futuro, não vejo problema nenhum. Vou ser burro para muita gente, como todos os treinadores são. Se ganhar, serei aplaudido, se perder, vaiado. Mas hoje não tenho esse pensamento. Penso em voltar unicamente como atleta até 31 de dezembro.
Mas não seria colocar em risco tudo que você conquistou como ídolo do São Paulo?
Claro, sem dúvida. Mas bater falta também era um risco. Tudo é um risco na vida. Seria algo novo, que poderia acarretar glórias e decepções. Não tenho esse pensamento agora, mas não vejo problema algum. É um risco como qualquer um corre na profissão que deseja exercer.
E há também o risco de você só ter emprego no São Paulo, não?
Também tem isso. Seria muito mais difícil ser técnico do Corinthians do que do São Paulo (risos). Mas não tenho essa ambição hoje, aqui ou em outro lugar. Se tiver de arriscar, seria mais fácil aqui.
Seu contrato vence no fim do ano e você já disse que a renovação depende de como você vai voltar e dos resultados do time. Algo mudou?
Nada. Agora muito mais depende de como eu voltar, do que vai se apresentar para o São Paulo no ano que vem. Minha cabeça está focada em cumprir esse contrato até o fim do ano, voltar a fazer o que sei. Tenho de esperar para ver quando estarei bom e em que situação.
O São Paulo está a quatro jogos de voltar a Libertadores. Vê o grupo com postura adequada e compreensão da importância desse momento?
Acredito que sim, todos estão conscientes disso. Quando chegar perto do jogo isso vai aflorar de maneira natural. O Coritiba tem um grande time, foi finalista no ano passado, mas o São Paulo, na minha concepção, tem tudo para ser campeão. Os quatro times são competitivos e podem ganhar o título, mas vejo o São Paulo com um elenco extremamente preparado.
Por ser um título inédito, é um gosto ainda mais amargo estar fora?
Gosto mais amargo que estar machucado não existe. Quando começa o Campeonato Brasileiro ou chegam as finais de um torneio importante como a Copa do Brasil, você gostaria muito mais de estar jogando. Se perde uma fase classificatória de Campeonato Paulista, com 19 rodadas que não valem absolutamente nada e um regulamento sem sentido, você sente falta pelo jogo em si, não pela competição.
Recentemente, o Marcos disse em entrevista ao GLOBOESPORTE.COM que secaria o Corinthians na Libertadores, porque não sabe como seria se eles fossem campeões. Você também seca? Como vê essa possibilidade?
Não interfere em absolutamente nada na minha vida. Interfere muito mais se o São Paulo for campeão da Copa do Brasil. O Corinthians tem um time competitivo, extremamente bem postado, equilibrado e vai brigar. É difícil, mas possível. As mesmas condições que o São Paulo tem de ganhar a Copa do Brasil, eles vão encontrar na Libertadores. Mas minha vida muda com as coisas que acontecem no São Paulo, não no Corinthians.
E o que tem achado dessa ascensão do Neymar? Ele virou uma celebridade, como vê sua postura dentro e fora de campo?
Ele vem jogando extremamente bem, fazendo a diferença. O Santos é uma equipe muito boa, o Muricy lida bem com atletas e está se adaptando a outro tipo de jogo, diferente do que era no São Paulo. Tem jogadores muito bons e tem no Neymar seu grande trunfo, o diferencial, acima da média.
Tem trabalhado muito bem a imagem visando a Copa do Mundo, vive momento publicitário extraordinário. As atenções estão voltadas para ele, que merece esse investimento e essa consideração da mídia e das pessoas porque, em campo, faz gols, grandes partidas, o que se espera de um jogador diferenciado.
Você conversou com o Denis depois da falha dele na semifinal do Campeonato Paulista?
Erros vão acontecer. Não foi o primeiro e não será o último. Tem de fazer uma carreira longa com o menor número de erros possíveis, mas eles acontecem.
Ele tem de levantar a cabeça e tirar lições. Se um goleiro começa a errar muito, tem um peso maior, mas erros esporádicos acontecem com os grandes, médios… É igual ao centroavante embaixo do gol. Uma hora ele vai perder, a gente vê no Inacreditável Futebol Clube.
É que aconteceu com ele, Julio Cesar, Deola, Rafael… Há algum problema com a safra?
Foi extrema coincidência. Falhas como essas geram insegurança maior nos jovens. Têm de passar por esse período e reencontrar a regularidade.
Isso abala a confiança do mais jovem, baixa a personalidade que ainda não está totalmente formada no jogo. Ajuda muito se tiver um bom time que o leve a ter oportunidade de jogar logo uma decisão. Se o time é incompetente, a derrota é iminente. No São Paulo, você tem chance de provar o quanto aprendeu com o erro.
O Luis Fabiano é um ídolo da torcida, mas padece da falta de títulos. Você já passou por isso. Dá algum conselho a ele?
O Luis é um cara muito experiente, passou dos 30 anos. No futebol você precisa montar o time certo, ter estrutura para fazer acontecer. As pessoas se enganam muito com vitórias, têm uma concepção de sucesso enganosa. A vitória esconde muita coisa. Ganhar não é sinônimo de sucesso.
Essas equipes montadas no São Paulo de 1991 a 93, e de 2005 a 08, são sinônimos de sucesso que se sustentaram ganhando porque tinham grandes jogadores e uma boa estrutura. Espero que o grupo montado este ano consiga o sucesso, e já comece agora com a Copa do Brasil, que falta tão pouco.
Para quem vive a rotina de um clube, incomoda essa confusão entre vitória e sucesso, que só considera trabalhos vitoriosos?
O futebol é imediatista, impulsivo. Mas quando se acompanha tudo de perto, sabe o que pensar. O torcedor vai ao estádio e tira conclusão por aqueles 90 minutos. Já vi muita gente boa, competente, trabalhar nesses 22 anos e não conseguir vencer.
E já vi gente ganhar títulos e você não conseguir explicar como. Quem está dentro observa de maneira melhor. O São Paulo tem um time muito melhor do que nos últimos anos e tudo para chegar à final.
Você visitou, recentemente, Barcelona e Real Madrid, teve contato com Guardiola e Mourinho. Surpreendeu a eliminação dos clubes na Liga dos Campeões?
Surpreendeu, ainda mais depois do primeiro jogo, em que Real e Barcelona mereciam vencer. Mas é o que falo de vitória e sucesso. Quem é campeão da Liga? O Chelsea. Quem é o sucesso do futebol mundial? O Barcelona.
Título se ganha ou perde, mas grupos ficam para sempre. O Chelsea tem um ótimo time dentro de sua proposta, mas o fenômeno é o Barcelona. Quem jogou melhor na final? Eu achei o Bayern. Há os times que ganham e os que são referência de sucesso.
Você preferiria fazer parte do Chelsea ou do Barcelona?
Eu prefiro jogar no São Paulo, mas prefiro que seja como o Barcelona do que como o Chelsea.
Mesmo sem ganhar o título?
Um time que jogue futebol promissor, a longo prazo, com o estilo do Barcelona, com certeza colocará títulos na parede, mesmo que momentaneamente perca um. O Barcelona conquistou com méritos todos os títulos. Ganhar ou perder é o que marca a história, mas, ao longo da vida, saber como ganhou e como perdeu se torna importante.
Você disputou duas Copas (em 2002, no Japão e na Coreia, e em 2006, na Alemanha), viveu estádios, preparação, aeroportos… Acha que o Brasil vai conseguir oferecer uma estrutura à altura em 2014?
Como são muitas sedes, serão problemas distintos. Alguns serão encontrados em todas. Na Alemanha foi fantástico. Tanto que o país é modelo de gestão, firme, intacto e confiável numa crise que atinge toda Europa. Aqui os estádios já gastaram mais de 70% do orçamento e não chegaram nem à metade, mas vão dar um jeito.
No Brasil se fecha os olhos para tudo. Se precisar injetar mais dinheiro, vão injetar. Mas nem com todo dinheiro do mundo vejo tempo suficiente para o país se apresentar com conforto e tecnologia suficientes. O campo de jogo vai estar pronto, nos arredores acho que vamos deixar a desejar. Mas é a festa do futebol, ainda mais se o país-sede é campeão.
O problema é o que será feito depois que a Copa se for. 70% das escolas públicas não têm quadra de futebol para a criança brincar, mas gastam bilhões em estádios que não vão encher nunca porque não têm times. Nós somos muito conformados. Pessoas famosas vão à televisão, dizem que vai ser a melhor Copa do Mundo, e o povo se ilude.
Espero que as coisas fiquem prontas, mas sem deixar para a última hora e virar aquela festa tradicional em obras superfaturadas. É o que sempre acontece no nosso país (veja no vídeo acima as críticas de Rogério Ceni à Copa-2014).
Surpreende o fato de, a essa altura, só 5% das obras estarem prontas?
Não, porque é assim. Quando se apressa, não tem muita concorrência, o tempo fica mais apertado, colocam muito dinheiro e fazem o negócio andar. Mas mesmo assim não vão conseguir tudo como um país organizado. Deveria estar pronto daqui a um ano. Os jogos vão acontecer, os aeroportos terão superpopulação, as delegações serão bem escoltadas. Isso vai funcionar.
Como analisa a mudança na CBF e a gestão do Marin, que tem uma ligação mais próxima com o São Paulo e foi jogador do clube?
A mudança se deu por pressão de mídia pública e não por vontade própria. Houve muitos erros, estão sendo investigados. Encontrei o doutor Marin duas vezes. Com o Ricardo Teixeira foi muito mais pelas Copas do Mundo. Mas se aguardamos quase 20 anos do Ricardo, não podemos avaliar em dois, três meses. A gente espera que melhore para todos os clubes, que eles sejam o grande motivo de a CBF existir.
O Muricy tem dito que pretende acabar com a concentração. Acha que é possível?
Acabar não vai, é muito difícil. Acontece até a primeira derrota (risos). Mas acho que pode diminuir esse período trancado. A pessoa tem que viver, não pode perder tanto tempo da vida, duas ou três noites antes de um jogo importante.
Tem de ter consciência profissional e isso vai mudar em breve. Descansar uma noite anterior, almoçar, é bacana pela proximidade. Não é pelo fato de não estar fora, mas de estar dentro, incluso num pacote sem excessos. Se você joga domingo à tarde, treina no sábado, descansa, acorda no domingo, almoça e vai para o jogo. Isso é cabível e aceitável.
O que pode falar a respeito desse recente problema com multa de trânsito, em que houve acusação de falsidade ideológica?
Aconteceu o seguinte: cheguei em casa e me disseram que havia uma multa para mim. Eu peguei, assinei e devolvi para que os pontos fossem creditados em minha carteira. Mas a multa era de um carro que havia sido emprestado, pensei que fosse de um dos meus.
Eu deveria ter assinado no espaço de condutor, e assinei como proprietário. Errei, assinei no lugar errado. Mas se eu quisesse me livrar da multa ou dos pontos, não teria assinado o meu nome em lugar nenhum. É que agora, três anos depois, querem achar algo errado. Foi isso.
fonte: Alexandre Lozetti, Leandro Canônico e Sergio Gandolphi
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