Como a investigação de um crime brutal marcou uma policial e sua filha

Como a investigação de um crime brutal marcou uma policial e sua filha

Como a investigação de um crime brutal marcou uma policial e sua filha

Marielene Freitas investigou assassinato de Marielma de Jesus Sampaio, uma menina de 11 anos que foi torturada, violentada e morta pelos patrões em Belém do Pará, há dez anos

A cena do crime e o cheiro de sangue na casa onde uma menina de 11 anos foi torturada, violentada e morta ainda atormentam a mente da policial civil Marilene Freitas, de 45 anos, mais de uma década após ela investigar o crime brutal em Belém, no Pará.

A morte de Marielma de Jesus Sampaio, em 2005, resultou na condenação dos patrões da menina – ela era babá – e lançou luz sobre a persistência do trabalho infantil doméstico no Brasil. Ronivaldo Guimarães Furtado e Roberta Sandrelli Rolim foram condenados a 52 e 33 anos de prisão, respectivamente. Furtado cumpriu 10, mas agora está foragido.

A história da policial chegou à reportagem por meio de uma mensagem enviada por sua filha, Amanda Marilise, de 21 anos, comentando um artigo sobre o caso Marielma postado na página da BBC Brasil no Facebook.

A jovem, que na época do assassinato tinha idade próxima à da vítima, relata no comentário, que recebeu cerca de três mil curtidas, como a reportagem sobre Marielma a faz lembrar do dia em que sua mãe retornou para casa depois de a polícia ter encontrado o corpo da menina.

Neste texto, a BBC Brasil mostra como um crime brutal tem, muitas vezes, um impacto que vai além das famílias diretamente envolvidas.

São duas vozes de um mesmo trauma, que só vieram à tona graças ao alcance e ao diálogo direto entre redação e leitores permitido pelas mídias sociais:

‘Minha mãe ficou inconsolável’ com a brutalidade do crime – Amanda Marilise, via Facebook
“Eu nunca vou esquecer esse caso. Certo dia, minha mãe, que é policial civil, chegou em casa com a fisionomia muito abatida. Eu, na época, com pouco mais de 10 anos de idade, sabia que tinha sido mais um daqueles ‘dias difíceis’ no trabalho.

No meio da noite, quando levantei pra usar o banheiro, ela tava chorando inconsolável na cozinha de casa, e, quando me viu, me puxou pra ela e chorou ainda mais… Ela dormiu comigo e com meu irmão caçula naquela noite. Depois, eu soube que ela foi uma dos policiais que encontrou a menina Marielma, e eu lembro o quanto aquele caso tirou o sono da minha mãe…

Ela sofreu com tamanha brutalidade do que viu, se perguntou várias vezes como o ser humano era capaz de tanta maldade assim com uma criança. Eu sei que esse foi sem dúvida um dos casos mais marcantes da carreira da minha mãe como PC/PA, daqueles que marcam a alma.

Aquilo me chocou e sempre me vejo pensando em alguns flashs. Eu conhecia meninas que trabalhavam em casa de família naquela idade. Alguns pais dão os filhos na melhor das intenções, para que eles tenham roupa e se alimentem bem, mas não é isso o que acontece.

(Minha mãe) continua trabalhando como policial civil, agora na área administrativa. Ela contribuiu durante pelo menos 15 anos ativamente nas ruas. Já viu e passou por tantas coisas… Mas acho que esse caso a inquietou bastante pelo estado em que a menina estava – pelo que sei foi realmente uma cena chocante, ela estava cheia de marcas pelo corpo e o abuso sexual era evidente, de tal forma que não acho nem correto escrever detalhes aqui pra vocês…

O que mais dói é ler que um desses assassinos agora está solto por aí! Muito triste e revoltante que isso ainda aconteça, o sentimento de impunidade é inevitável.”

‘Eu olhava a minha filha dormindo e pensava naquela criança no IML’ – Marilene Freitas, policial civil
“Eu tinha 11 anos de experiência como policial civil na época do crime. Mas jamais tinha visto uma criança naquela situação.

Eu estava no plantão quando chegou a denúncia de que uma criança teria morrido após cair no banheiro enquanto tomava banho e bater a cabeça em uma pedra. A mulher que se apresentou como mãe da vítima e fez a denúncia chorava muito. Fomos averiguar.

Assim que eu entrei na casa, senti um cheiro de sangue. O cheiro me perseguiu desde a entrada, passando pelo corredor até o banheiro, o último cômodo.

A pedra estava lá, naquele cômodo pequeno, ao lado do chuveiro. Quando vimos a menina, percebemos que tinha algo mais além de apenas uma queda. Mas não falamos nada porque não cabe a nós dizer nada. Quem diz é a perícia.
Mas, à primeira vista, era possível perceber alguns hematomas na criança, um indício de que ela não morreu sozinha. Um médico amigo da família chegou ao local e disse que a garota estava morta. Eu perguntei, então, porque a família não prestou socorro. Mesmo que a criança esteja morta, a gente ainda corre com a criança para o médico.

Em seguida, a mulher que se dizia mãe da garota foi descoberta como a pessoa que ‘pegou’ a menina para trabalhar na casa dela. Eu falei para a delegada que achei aquilo muito estranho. O resultado da primeira perícia foi de que a vítima tinha sido estuprada várias vezes.

Eu tinha percebido sinais de muita violência quando o corpo foi removido, mas me contive e fiquei fria. Foi uma cena deplorável. Me veio à mente o comportamento maldoso quando vi que ela estava só de calcinha. Quem toma banho de calcinha?

Fiquei imaginando como um ser humano poderia fazer aquilo com outro ser humano, uma criança. Desde o início havia essa suspeita e eu fui a mais veemente contra o casal que morava na casa. Eu disse para a delegada que tinha alguma coisa estranha e pedi para não deixarem eles irem embora. Se não fosse isso, eles teriam fugido, mas foram presos na mesma hora e negaram o crime a vida inteira.

Passamos a noite inteira no caso, mas quando chegamos no dia seguinte à delegacia e vimos as fotos da perícia feita pelo Instituto Médico Legal (IML), não teve como aguentar.

Quando eu cheguei em casa, não falei nada. Mas minha filha acordou de madrugada e,quando a gente se abraçou, eu chorei. Então, comecei a relatar o caso com se eu estivesse conversando com um adulto.

Apesar de ela ter apenas 11 anos na época, a mesma idade da vítima, ela sempre se inteirou de tudo. Ela era muito inteligente e eu me confidenciava com ela porque eu não era casada e a Amanda era minha companhia.

No dia seguinte, ela estava almoçando e, com as lágrimas caindo, me perguntou: ‘Mamãe, será que a Marielma está no céu?’. Respondi: ‘Com certeza’. Esse momento ficou dentro de mim. Nunca vou esquecer.

Dias depois, ela disse: ‘Mãe, o relato tocou tanto dentro de mim que eu já orei para essa menina muitas vezes.’

Semelhanças
Com o passar dos dias, eu olhava a minha filha dormindo e pensava naquela criança no IML. Mesma idade, mesmo tamanho e até o rostinho era muito parecido com o da Amanda. Fora o meu outro filho, que também tinha 8 anos na época.

Eu me senti muito incapaz diante daquilo. Por que não cheguei meia hora mais cedo? Por que nenhum vizinho ligou para a polícia e disse que tinha uma griança gritando? A menina tinha cortes na orelha, feitos com tesoura ou faca. Será que ela não gritou?

No dia do crime, os vizinhos disseram à polícia que ouviam gritos durante sessões de maus tratos contra a menina. A vizinhança inteira ouvia que a menina era torturada e ninguém tomava uma atitude. Isso é muito triste. Saber que as pessoas percebem esse tipo de coisa e não tomam nenhuma atitude.

Me recordo que a casa onde a vítima foi encontrada tinha até um quarto destinado à tortura. No chão desse cômodo havia uma série de objetos que foram sido usados para torturar aquela criança. Cabos de vassouras quebrados, calcinhas com sangue e outras coisas. Roupas rasgadas. Parece que o fetiche dos criminosos era rasgar as roupas da pessoa.

A gente pensa: que defesa tem um humano desse? Eu já vi muitas mulheres pós-estupro, muitas mortas, mas houve uma tentativa de defesa. Agora, a criança não tinha o menor sinal de que tentou se defender, nenhuma unha quebrada, nem arranhou segurando alguma coisa. Isso é muito triste e você compara com os filhos dentro da sua casa e desaba no choro.

Na época do crime, eu fiquei lembrando de mim mesma quando fui abusada por um dentista quando tinha 13 anos. Minha mãe mandou eu ir sozinha ao consultório e ele tentou pegar nos meus seios. Eu era esperta e percebi, mas isso não ocorre com todas as crianças.

Jamais me esqueci daquilo e nunca deixei meus filhos irem ao médico sozinhos. Até o motivo de eu continuar solteira pode ter sido por isso. Eu nunca admiti padrastro para eles porque a gente fica apavorada. Isso mexe com a gente.

Depois do caso Marielma, todos esses fatos voltaram à minha mente. Foi um marco na minha vida.
Investigações
Desde então, eu entro na internet com frequência para acompanhar casos de estupro infantil, morte infantil. Eu tenho quatro ou cinco nomes de foragidos por cometer esses crimes, inclusive ele (Ronivaldo), que eu jogo sempre na internet, em todas as redes sociais, para ver se reencontro.

Como uma pessoa que cometeu um crime hediondo desse está solta? Será que ele está cometendo de novo? Eu tenho esse prazer de pegar esse tipo de gente. Eu não deixo de mão. Se ele fugir mil vezes, a gente vai prender.

A sociedade tem que ajudar a acabar com esses crimes também. Os vizinhos ouviram a menina ser torturada. Que sociedade é essa que se cala, que não denunciou?

Poderiam ter falado: ‘Olha, acho que tem uma menina ali perto da minha casa gritando’. Nós temos que cultivar essa atitude nas pessoas. Temos que nos imaginar no lugar do outro. Eu falo sempre isso para os meus filhos.

Se alguém me diz que tem uma suspeita de alguma coisa, eu digo: ‘Epa! Vamos ver o que é isso’. Não existe suspeita que vai ficar ilesa. Eu sou uma agente de segurança e tenho o dever de fazer valer a vontade do Judiciário, que disse que esse homem deveria estar na prisão. E não é difícil achar.

Eu fico preocupada porque as crianças são muito frágeis e não pedem socorro. Quem garante que essas pessoas não estão fazendo novas vítimas?”

Fonte: Último Segundo/Brasil/BBC BRASIL


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