“O dia em que a polícia norte-americana apontou armas contra mim”

"O dia em que a polícia norte-americana apontou armas contra mim"

“O dia em que a polícia norte-americana apontou armas contra mim”

Repórter da BBC Brasil descreve abordagem que sofreu e como episódio o fez refletir sobre relações raciais nos EUA e no Brasil


No começo de 2015, poucas semanas depois de me mudar para Washington, estava caminhando sozinho quando o desenho da luz do sul numa garagem chamou minha atenção. Parei e peguei o celular para fotografar a cena.

Em instantes, um carro subiu na calçada a uns três metros de mim. Dois homens com pistolas em punho saíram do veículo, apontando as armas na minha direção e ordenando que eu ficasse imóvel.

Como nos filmes, um deles mostrava um distintivo: eram policiais à paisana. Aos gritos, perguntaram o que eu fazia ali e me pediram um documento. Entreguei o passaporte, disse que estava tirando uma foto e questionei, entre apavorado e revoltado: “É proibido?”.

Eles responderam que a polícia usava aquela garagem – o que eu não sabia – e que tinham achado minha atitude suspeita. Quando viram que eu tinha um visto de jornalista, baixaram o tom e explicaram que estavam em alerta desde o atentado ao jornal Charlie Hebdo, em Paris. Anotaram meus dados, pediram desculpas – “Estamos só fazendo nosso trabalho, espero que entenda” – e foram embora.

Quando contei para minha mãe, a primeira reação foi perguntar se eu estava cabeludo e barbudo. E sim, eu estava. Meu cabelo é preto, grosso e cresce para cima. Quando viajo por países árabes ou do norte da África, sou percebido como local até abrir a boca. Para minha mãe, esses traços se acentuam quando estou com barba e cabelo compridos.
Lembrei disso ao entrevistar na última sexta-feira (8) um latino que é professor de relações raciais na Universidade Loyola em Chicago, Juan Perea. Perguntei por que há menos apoio entre os latinos do que entre os brancos ao movimento Black Lives Matter (vidas negras importam), que combate a violência policial contra os negros e ganhou projeção internacional.
Segundo o Pew Research Center, 33% dos latinos nos EUA simpatizam com o movimento. Entre os brancos, são 40%. Ele citou duas hipóteses: primeiro, os latinos, muitos deles imigrantes ou filhos de imigrantes, ainda não conhecem em detalhes a história da violência sofrida pelos negros nos EUA.

E segundo: todos no país estão sujeitos a uma “força gravitacional em direção à brancura”. Por essa dinâmica, latinos que não são vistos nem como brancos nem como negros tendem a pender para o primeiro campo, disfarçando alguns traços físicos ou reprimindo comportamentos (como falar português ou espanhol em público).

Ao agir assim, são recompensados. Latinos de pele mais clara conseguem até passar por brancos em algumas circunstâncias, diz ele. Quando minha mãe perguntou se eu estava barbudo e cabeludo, ela inconscientemente queria saber para qual lado eu estava pendendo. Depois do episódio, cortei o cabelo e aparei a barba. Foi impressionante notar como no parque em que passeio com meu cachorro alguns americanos brancos que me ignoravam passaram a me cumprimentar.

Sei que jamais me viram como “white” (branco), mas certamente havia me tornado menos “brown” (marrom – o conceito que abriga a maioria dos não negros e não brancos nos EUA). Fui recompensado por pender para a brancura – um privilégio de pessoas que estão nessa zona cizenta. A mesma lógica, imagino, vale para o Brasil, ainda que lá eu esteja fora dessa zona e seja sempre visto como branco, mesmo barbudo e cabeludo.

Saí ileso da abordagem, mas me pergunto o que teria ocorrido se tivesse feito algum gesto brusco. Teriam atirado? No início, não sabia nem que os homens eram policiais. Também fiquei me perguntando se eu teria sido abordado se fosse um americano branco. Ou se de fato fui descuidado ao deixar barba e cabelo crescerem.

Vejam como o sistema é perverso: sem perceber, você passa a se culpar por simplesmente ser quem é. Minha barba e meu cabelo cresceram porque barbas e cabelos crescem. Mas principalmente me perguntava o que teria acontecido se eu fosse negro. Em 2015, 37% das pessoas desarmadas mortas pela polícia americana eram negras, embora negros sejam só 13% da população.

Na semana passada, dois negros desarmados tiveram suas mortes gravadas e divulgadas pelo Facebook – Philando Castile, em Minesotta, e Alton Sterling, em Lousiana. Os casos alimentaram ainda mais o debate sobre violência policial contra os negros e geraram uma nova onda de protestos pelo país.

Num deles, em Dallas, um atirador negro (Micah Johnson, de 25 anos) matou cinco policiais e foi morto em seguida. Segundo a polícia, quando foi cercado pelos agentes, Johnson disse que queria matar pessoas brancas.
Alguns comentaristas conservadores disseram que o movimento Black Lives Matters está no epicentro dos protestos que se intensificaram nos últimos dias nos Estados Unidos: era parcialmente culpado pelo ataque por, segundo eles, ter acirrado a tensão racial nos EUA. Membros do movimento, porém, condenaram veementemente o atirador.Para Na’ilah Suad Nasir, que pesquisa temas raciais na Universidade Berkeley, é preciso analisar os casos separadamente. “Temos um grave problema neste país com o terrorismo e a facilidade de obter armas, o que parece ter sido o caso em Dallas, e outro grave problema com violência policial.”

Racismo sistêmico

Quando se fala em racismo na polícia americana (e na brasileira), muitos costumam restringir o problema a “algumas maçãs podres” e a dizer que a maioria dos policiais são pessoas honestas, que querem apenas o bem dos cidadãos. Mas para Juan Perea, da Universidade Loyola, a coisa é mais complexa: o policial que puxa o gatilho contra um negro desarmado numa abordagem pode ter uma carreira brilhante, ser bom pai e admirado pelos colegas.

Ele cita uma pesquisa feita por pesquisadores de Harvard que mediu o “preconceito implícito” dos americanos contra negros. O experimento tentou detectar preferências ou preconceitos raciais reprimidos, pedindo que os participantes associassem rapidamente fotos de brancos e negros a palavras como “agonia”, “alegria” e “tristeza”. A pesquisa apontou que a maioria dos americanos brancos tem um “preconceito implícito” contra negros, ainda que seja inconsciente dele.
Talvez só uma minoria dos policiais seja abertamente racista, diz Perea, mas é preciso reconhecer o racismo implícito assentado lá no fundo, aquele racismo que todos carregamos por vivermos em sociedades racistas. É um racismo muitas vezes sutil, mas que pode tornar um policial mais propenso a atirar contra um negro ao ter de tomar uma decisão numa fração de segundo. Ou a lhe dar voz de prisão por desacato após uma discussão. Ou a prendê-lo por carregar um baseado, mas deixar um branco passar.

Seguindo esse raciocínio, eu sou racista. Se você cresceu no Brasil ou nos EUA, há boas chances de que também seja. Também por essa lógica, as polícias americana e a brasileira só deixarão de ser racistas quando as sociedades americana e brasileira deixarem de ser racistas.

O que não quer dizer que até lá não haja formas de impedir mortes banais, diz Cathy Schneider, especialista em violência policial da American University: “Não há nenhuma razão para que a polícia mate alguém desarmado”, ela afirma. “Há muitas formas pelas quais as forças policiais podem diminuir a tensão de uma situação – elas devem ser treinadas para agir assim.”

Em vários lugares dos Estados Unidos, já há mudanças em curso. Muitas polícias têm sido pressionadas a mudar práticas para punir com maior frequência abusos contra minorias, aproximar-se da comunidade e se tornar mais diversas racialmente.

Quanto a mim, de uns tempos pra cá deixei de cortar o cabelo e de aparar a barba regularmente. Pensei que, se alguém deixar de me cumprimentar por isso, eu é que não quero papo com essa gente. Mas nunca mais tirei fotos por aqui com a mesma espontaneidade.

Fonte: Último Segundo/Mundo/BBC BRASIL


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