Auxiliar suspeita de trocar soro por vaselina dá detalhes do atendimento

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A auxiliar de enfermagem de 26 anos suspeita de injetar vaselina em vez de soro na veia de Stephanie Teixeira, de 12 anos, contou ao “Fantástico” detalhes sobre a troca que resultou na morte da menina, na madrugada do dia 4 de dezembro.

“Esse instante de que eu olhei pra garrafa, mas não vi, esse momento que meu cérebro desligou, esse instante eu não tenho como fugir, como escapar”, disse. “Tudo o que eu tinha, tudo o que eu sempre amei na minha vida acabou. Acabou tudo”.

Pela primeira vez, a auxiliar de enfermagem falou diante das câmeras sobre o erro que marcou sua vida para sempre. Ela só aceitou dar entrevista com a condição de que seu rosto não fosse mostrado por inteiro e relembrou os acontecimentos do dia 3 de dezembro, quando Stephanie deu entrada no Hospital Municipal São Luiz Gonzaga, na Zona Norte de São Paulo.

A auxiliar conta que trabalhava no hospital havia um ano e meio. Naquele dia, ela estava escalada para o turno da tarde. “Cheguei lá, peguei plantão, como de costume. Por volta das três horas [da tarde], a Stephanie deu entrada”, lembra. A menina tinha sintomas de virose, como mal-estar e vômitos.

“A enfermeira decidiu levar ela direto para a sala de hidratação, que é onde eu fico, para que as doutoras fossem atender ela direto lá”, diz a auxiliar. No depoimento à polícia, ela informou que foram receitados dois litros de soro, com remédios e glicose. Stephanie começou a receber a medicação e, segundo a auxiliar, logo pareceu mais bem disposta.

“Ela já estava mais corada, brincando. Eu até fui lá, conversei com ela um momento, brinquei com ela”.

A auxiliar notou que precisava buscar mais soro, para a terceira e última dose, e se dirigiu a uma espécie de depósito. Lá, de acordo com a auxiliar, havia um grande armário com três divisões.

Numa ponta, roupas de cama. Na outra, seringas e máscaras. “E a parte do meio é só soro. Sempre teve só soro”, afirma. “Então, eu agachei. Esse soro estava na última prateleira. Enfiei a mão dentro do armário, peguei duas garrafas que estavam uma do lado da outra, voltei para a sala de hidratação, que é onde a menina estava”.

As garrafas a que auxiliar de enfermagem se refere são praticamente idênticas. “Fui colocar as garrafas em cima da mesa. Eu olhei uma garrafa e vi: ‘solução de reparação’, que é o soro. E na outra eu olhei, mas eu não vi. Eu acreditei, eu jurava de pés juntos que as duas garrafas se tratavam da mesma coisa. De soro”.

Enquanto colocava a garrafa no suporte, a auxiliar diz que uma colega entrou na sala e puxou conversa “para falar de outras crianças que iam ter que entrar para ser atendidas”.

A substância começou a ser injetada em Stephanie. “E saí para atender as outras crianças, outras coisas, um monte de coisa que precisa ser feita”. Cerca de meia hora depois, segundo ela, a mãe de Stephanie disse que a filha não estava se sentindo bem. “Ela disse: ’Mãe, minha boca está formigando. Minha garganta está formigando’”, relata Rosiani Mércia Teixeira, mãe de Stephanie.

A auxiliar conta que correu para ver a menina. “Falei: ‘O que você está sentindo?’. Ela falou: ‘Não sei’. Mas aí eu comecei a perceber que ela não estava bem mesmo, então, eu saí para chamar a enfermeira e o médico”.

O médico veio e Stephanie teve uma crise. “A boca entortando, o olho virando, ela fechava a mão”, lembra a mãe de Stephanie.

“O doutor questionou então a medicação que estava correndo. Eu olhei e falei: “solução de reparação”. Pelo aspecto da garrafa, a gente já conhece”.

Uma colega da auxiliar checou o rótulo da garrafa. “Aí, ela falou o que era para mim e pro doutor. Era vaselina. Aí, eu já entrei em desespero. Falei: ‘Impossível’”, diz a mulher.

Stephanie foi levada para a UTI do São Luís Gonzaga e, mais tarde, transferida para a Santa Casa de São Paulo. Pouco depois de meia-noite, relembra a mãe da garota, chegou a notícia: “Eu escutei a minha filha gritar: Então, a minha pressão já baixou. Falei: ‘Aconteceu alguma coisa com a minha filha, meu Deus’. Aí me falaram: ‘A sua filha faleceu’. E, aí, o mundo acabou”, conta Rosiani.

A vaselina que a auxiliar pegou por engano estava sendo usada no tratamento de uma criança com queimaduras. O líquido oleoso não se mistura com o sangue e causa embolia, ou seja, o entupimento de veias e artérias, comprometendo órgãos vitais.

A auxiliar de enfermagem diz que nunca tinha visto vaselina naquele recipiente. “Durante todo o tempo que eu trabalhei lá, eu só tinha visto soro naquela garrafa. Nunca tinha visto outra coisa, medicação, nada”. Ela diz que não tem ideia de quem guardou a vaselina no lugar errado.

Responsabilidade
Questionada pelo “Fantástico” se assumir a responsabilidade pela morte da Stephanie, a auxiliar respondeu: “Eu acho que foi um conjunto de erros, um conjunto de falhas. Esse instante de que eu olhei pra garrafa, mas não vi, esse instante que meu cérebro desligou – não sei, por causa de outras coisas que eu tinha na cabeça, outras responsabilidades – esse instante eu não tenho como fugir, como escapar. Mas eu acredito que existem outras coisas que colaboraram para que isso acontecesse”, respondeu.

O advogado da auxiliar, Roberto Vasconcelos da Gama, acredita que ela foi induzida ao erro. “Não podem duas coisas idênticas estar em um lugar totalmente inadequado”, argumenta o advogado. “Deveria, no mínimo, ter uma tarja, uma cor diferente”, disse a mulher.

Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não existe regra para formato ou cor de embalagem de remédio, apenas para os rótulos. Todos devem estar claramente identificados.

No Hospital do Coração, centro de referência em São Paulo, a distribuição de remédios é controlada eletronicamente. “A gente pega um medicamento e já tem o nome do paciente no leitor ótico. Você pega o código de barras e passa. Se, de repente, não for este o medicamento, vai avisar. Então, não tem como subir o medicamento errado para o paciente”, garante Marcelo Murad, gerente farmacêutico do Hospital do Coração.

Nesta semana, a Santa Casa de Misericórdia, entidade responsável pelo Hospital São Luiz Gonzaga, anunciou que vai mudar a forma de identificar os remédios nas 39 unidades ligadas à instituição. Mas, para o presidente do Conselho Regional de Enfermagem (Coren-SP), Cláudio Alves Porto, a falha da auxiliar de enfermagem não tem desculpa. “O profissional que está fazendo o procedimento sabe ler”, diz Porto.

Profissionais de enfermagem
Antes de medicar um paciente, todo profissional de enfermagem deve seguir a regra básica das cinco certezas: “Paciente correto, medicamento correto, via correta, dose correta e horário correto”, ensina Cristiana Prandini, coordenadora de Qualidade de Segurança do Hospital do Coração.

E quem são os profissionais de enfermagem? Há três tipos: o enfermeiro, de nível superior; o técnico, de nível médio; e o auxiliar, que precisa do ensino fundamental e de um curso de um ano para exercer a função.

“Ele existe para prestar cuidados básicos, elementares: a parte de higiene, a parte de sinais vitais simples, medicamentos simples, curativos simples”, detalha Cláudio Alves Porto, presidente do Coren-SP.

Aplicar soro também é tarefa de um auxiliar de enfermagem. Mas, segundo os especialistas da área, as três categorias vivem uma combinação perigosa de formação precária, salários baixos e excesso de trabalho. “Profissionais de enfermagem estão tendo dois, três empregos”, afirma Porto.

Erros acima da média
O resultado são os erros, que se multiplicam. Nos últimos 12 meses, o Coren paulista recebeu 356 denúncias contra enfermeiros, técnicos e auxiliares, o triplo da média dos anos anteriores.

O “Fantástico” teve acesso a um relatório com os principais casos investigados pelo conselho em 2010.

Entre eles, está o caso de um auxiliar que diluiu, por engano, um medicamento em cloreto de potássio, que é uma das substâncias da injeção letal usada para executar presos onde vigora a pena de morte e causa parada cardíaca.

Em Votuporanga, a 521 km de São Paulo, uma mulher de 83 anos morreu ao receber na veia penicilina benzatina, um antibiótico muito forte. “Ela só virou o olho e acabou”, lembra Lurdes de Oliveira, filha dela. A técnica de enfermagem deveria ter aplicado a injeção no músculo.

Em outro episódio, desta vez envolvendo um auxiliar, um recém-nascido recebeu uma injeção na artéria da mão, quando o certo seria na veia. O bebê teve quatro dedos amputados.

Na Grande São Paulo, mais um erro absurdo. Uma auxiliar de enfermagem conectou, sem querer, uma mangueira de inalação no braço de Mariana, de 1 ano e 8 meses. “O bracinho da menininha inchou rapidinho, inchou que nem um balão. Ela suspirou e morreu”, conta Rosilene de Souza, mãe de Mariana. O diagnóstico: embolia provocada pelo ar no sangue.

Em todos os casos citados até agora, os responsáveis foram afastados e aguardam o julgamento do conselho.

“Exija sempre que o profissional que vai te atender esteja identificado com um crachá, com uma fotografia, com o nome legível e a categoria profissional. Se for auxiliar de enfermagem, não permita que ele faça ações que sejam consideradas de risco”, recomenda Porto.

Até o dia 3 de dezembro, quando atendeu Stephanie, a auxiliar de enfermagem não tinha qualquer mancha no currículo. “Eu ingressei na enfermagem por puro amor ao que eu fazia. Eu acreditava que aquilo o que eu fazia era vontade de Deus. Eu agradecia a Deus todos os dias por estar ali”, diz.

Questionada sobre o que faria se pudesse ter um contato direto com a mãe da Stephanie, a auxiliar de enfermagem disse: “Sou mãe, me coloco no lugar dela. Eu sei que não existe palavra no mundo inteiro que vai confortar ela. A única coisa que eu posso dizer, nesse momento, é que todo mundo que eu conheço, eu mesma, a minha família, que a gente ora muito por ela e pela Stephanie. Que é a única coisa que a gente pode fazer no momento”, diz a mulher, que tem um filho de 4 anos. “Desde o dia desse acontecimento, eu não consigo nem olhar pra ele.”

Homicídio culposo
A auxiliar de enfermagem suspeita de trocar o soro por vaselina vai responder por homicídio culposo, sem intenção, e corre o risco de perder o registro profissional. Ela está temporariamente afastada do trabalho.

Para a defesa, ela pode não ser a única culpada. “Condutas que precisam ser apuradas, que precisam ser verificadas, se tem ou não tem responsabilidade de mais alguém nesse episódio lamentável”, afirma Roberto Vasconcelos da Gama, advogado da auxiliar.

“Um segundo que o meu cérebro falhou é o que vai ficar. É um sentimento que vai me acompanhar pelo resto da vida. A punição eu já estou tendo, e essa punição eu vou levar para onde eu for. O que quer que eu faça. Isso nunca vai mudar”, diz a mulher.

É a triste marca de um erro trágico e humano. “Embora a gente estude, embora a gente se dedique todos os dias, embora a gente tenha um amor verdadeiro de fazer o que a gente faz… Mas nós continuamos sendo seres humanos”, finaliza.

fonte: Fantástico


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