Reféns do medo, PMs mudam rotina e escondem farda para não serem alvejados
Em seis meses, 54 policiais militares foram mortos no Rio, mais que a metade do total de 2015, quando houve 95 mortes. Famílias também sofrem e adotam ‘lei do silêncio’
O orgulho de usar a farda é substituído pelo medo de ser percebido com ela ao estar fora de serviço. A profissão sonhada na infância e conquistada por meio de concurso não pode sequer ser mencionada pelos filhos. Para se defender no deslocamento para o trabalho, o uso de uma pistola já não é suficiente. Apesar de ter um quintal, um varal foi feito dentro da residência para o uniforme não ser visto. A mudança da favela onde foi criado é motivo para um endividamento que consome metade do salário. Essa é a realidade de boa parte da tropa da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Aquela que prende é também prisioneira de sua profissão.
O medo de ser alvo de violência por ser PM cresceu juntamente com os dados estatísticos e fez a tropa redobrar medidas de proteção. Em mensagens de WhatsApp, circularam áudios de policiais alertando os companheiros para falsas blitzes. A veracidade das mensagens não foi confirmada. Mesmo sem saber sua origem, todos os comandantes da capital repassaram um texto pelo aplicativo para os setores operacionais. A mensagem alertava para possíveis ataques do Comando Vermelho a policiais. O receio foi tão grande que o chefe do setor operacional do 22º BPM (Maré), major Fábio Ximenes, fez memorando interno reproduzindo parte do texto disseminado pelo aplicativo.
Somente nos primeiros seis meses deste ano, 54 policiais foram vítimas de assassinato no estado, somando-se os mortos em serviço e os de folga. É mais da metade do total de 2015, quando 95 agentes da PMERJ foram mortos. No último domingo, dia 26, um carro que havia sido roubado em março foi abandonado com a pichação ‘Morre PM’.
PACIFICAÇÃO DETONOU REPRESÁLIAS
A onda de violência, segundo alguns policiais, pode ter origem no próprio processo de pacificação. “A situação complicou depois das Unidades de Polícia Pacificadora. Como estamos no território do bandido, ele perdeu o total respeito por nós. Não nos atacavam porque queriam evitar operações na área deles”, opinou um oficial, que já atuou como subcomandante de UPP. “Os recrutas foram treinados para atuar em uma área sem clima de guerra, mas isso não existe. Isso explica por que a maioria dos mortos em serviço ocorre em área pacificada”, disse.
“Meu medo não é de dar entrevista e ser punido. É de morrer por ser policial”, afirmou o sargento W., ao receber a reportagem na sua casa, no interior de uma favela da Região Metropolitana do Rio. A residência possui grades e dois portões. Com 15 anos de corporação, ele tenta sair da casa onde mora com a esposa e o filho, de 4 anos. Para isso, fez um empréstimo, que consome mensalmente quase metade do seu salário de R$ 2,4 mil, na compra de um apartamento que está em construção. “Nasci e fui criado aqui. Todos sabem que sou policial. Mas não quero que o meu filho cresça aqui. Há boca de fumo perto.”
Há um ano ele resolveu não andar mais armado na companhia da família. “Hoje o marginal anda de fuzil. Muito mais armado do que nós. Prefiro não reagir e ter a chance de sobreviver”, disse. Com receio de ser reconhecido, W. diz que seu lazer agora é dentro da própria residência. “Já fui assaltado e só não morri porque minha esposa jogou a arma para trás do banco do carro. Prefiro não sair mais para passear. Virei prisioneiro na minha própria casa”, afirmou.
Há outros policiais, no entanto, que preferem carregar armas mais letais a todo instante. É o caso do soldado R., há quatro anos na corporação. Ele resolveu financiar a compra de espingarda calibre .12 para deixar no carro. O automóvel também foi blindado, ao custo de R$ 25 mil, financiados. “Se um bandido chegar ao meu celular é porque morri. Está cada vez pior, mas prefiro morrer atirando. Não vou ser refém”, afirmou, sem se dar de conta de que já é prisioneiro do próprio medo. Outro policial passou a usar a pistola junto ao corpo, no carro. “É melhor para reagir. Antes, usava embaixo do banco. De um mês para cá, não consigo tirar de perto”, disse. “Se um traficante nos reconhecer, a morte é certa.”
Os familiares também sofrem com a mesma insegurança. Casada há cinco anos com um policial militar, M., mora em uma casa com um grande quintal. No entanto, um varal foi estendido dentro da cozinha, para não mostrar a farda aos vizinhos. “Moro perto de uma favela que tem traficantes. Tenho medo que vejam que um policial mora aqui e façam alguma covardia”, explicou.
Também na tentativa de não ser reconhecida, a policial militar L., esconde a farda no meio de lençóis guardados na mochila, ao se deslocar para ir ao trabalho.“Infelizmente, a maioria esquece que, sob o uniforme, existem seres humanos que têm sentimentos”, disse. “Vejo na favela as mulheres deixando os filhos em creches, fazendo sacolão. E elas me olham apenas como policial. Sempre falo que sou como elas”, afirmou.
Indagada se escolheria outra profissão, ela responde citando o hino da corporação. “Esse trecho do Hino da Polícia Militar é que me encoraja: ‘Em cada soldado tombado, mais um sol que nasce no céu do Brasil.Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser. É enfrentar a morte, mostrar-se um forte no que acontecer’”, disse, emocionada.
Pensionistas sofrem com atrasos de salários
“Tenho contado com a ajuda de familiares para me dar de feijão até iogurte para meus filhos. Quero conseguir um trabalho. O estado está atrasando nossa pensão”, contou uma viúva que participou de um ato organizado por familiares de PMs na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, na última quinta-feira.
Com a falta da pensão, R., teve que tirar os filhos da escola particular e colocá-los no ensino público, gratuito. “Matriculei meus dois filhos na escola pública. Só peço que não digam que o pai era policial militar. Peço que digam que era professor. Tenho medo que façam algum mal a eles”, afirmou, chorando.
A crise financeira do estado fez com que os salários dos policiais militares fosse parcelado. Com isso, muitas famílias estão passando necessidade, já que a graduação mais baixa da corporação recebe, líquido, a quantia de R$ 1.800. O grupo ‘Esposas e familiares — Somos todos sangue azul’, que tem uma página no Facebook, reúne familiares de PMs.
“Fundamos o grupo para nos ajudar e organizar protestos. Está muito difícil viver com o atraso dos salários. Tudo virou uma bola de neve, já que, além de receber pouco, temos empréstimos a pagar”, disse Mariana Gadelha, uma das coordenadoras do grupo, que já reúne quase 100 integrantes.
Familiares buscam ajuda psicológica
Os números de atendimentos no setor de Psicologia da Polícia Militar mostram que não somente os agentes envolvidos diretamente no combate à criminalidade recorrem à ajuda, mas também os familiares. De acordo com a corporação, em 2013 foram 21.110 atendimentos a familiares, sendo 9 mil a policiais. No ano seguinte, a busca a atendimentos aumentou: foram 24.759 consultas com os psicólogos, sendo quase 10 mil a agentes da corporação. As estatísticas referentes a 2015 e ao primeiro semestre deste ano não foram divulgadas.
Após ter sido feito refém de traficantes no Morro da Pedreira, em Costa Barros, Zona Norte do Rio, o sargento K., foi um dos que procuraram atendimento no setor. “Estava em uma viatura com outros quatro colegas e recebemos um chamado de outra Patamo. Fomos na sua direção. Quando chegamos perto da Pedreira, fomos rendidos por uns 80 traficantes”, conta.
Todos os PMs foram obrigados a se ajoelhar e levaram tapas no rosto. “Fomos liberados, pois eles estavam ali para invadir o morro, de outra facção. Fiquei afastado 10 dias do trabalho, com apoio psicológico. Depois disso, tive que ir para a Psiquiatria, mas a PM está sem esses médicos”, contou. Sem condições financeiras de pagar a um psiquiatra, K. voltou a trabalhar. “Me sinto abandonado. Trabalho em uma área perigosa. Em um tiroteio meu fuzil já engasgou. São armas velhas, algumas doadas. Os traficantes estão mais armados”, compara.
A Fiocruz realizou uma pesquisa no decorrer de 11 anos sobre a saúde mental dos policiais militares. Em audiência na Alerj, na ‘CPI das mortes de policiais’, em abril deste ano, a pesquisadora Maria Cecília Minayo reapresentou os resultados. “Fatores relacionados ao tempo de serviço, à carga horária e à dupla jornada de trabalho foram determinantes para o chamado estresse mental do policial. Muitos apresentam problemas de saúde a curto prazo”, afirmou.
*BRUNA FANTTI
Fonte: ùltimo Segundo/Brasil/O Dia
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